PENSAR POR DEBAIXO DAS ÁRVORES



PENSAR POR DEBAIXO DAS ÁRVORES


Aquela vastidão de terras de mil e setecentos hectares era um paraíso além da riqueza que representavam para o seu dono.   Para o dono era o lucro que seus bois geravam. Para os campesinos era o suor pelo salário; mas era muito mais.  O dono nunca soube o que mais os empregados  e  tarefeiros obtinham em sua fazenda; se soubesse por certo se angustiaria por não saber como pelo desfrute cobrar ou compensar com a remuneração que pagava.  Ele o dono somente media seus lucros através da balança  de pesagem da carne na saída da fazenda.  Raramente andava a cavalo pelas terras; geralmente passava sobre os pastos dos piquetes de avião, quando não chegava de carro à fazenda.   O pasto, que ocupava quase toda a área de terras,  mantinha-se sujo grande parte do tempo pelo aparecimento de ervas  como o campin-amargoso e o assa-peixe, inservíveis ao gado, que vão aos poucos  tomando o pasto e  fazendo rarear a grama e o capim destinados ao alimento dos animais.

Periodicamente havia a necessidade de se proceder a roçada das ervas intrusas e para isto precisava-se de contar com braçais volantes de fora da fazenda já que os trabalhadores residentes possuíam afazeres predefinidos.    Os trabalhadores volantes vinham das cidades vizinhas para ganhar sobre tarefa à base de alqueires limpos.  Dada a distância e a dificuldade de transporte a única alternativa possível era que os tarefeiros se arranchassem na fazenda, geralmente no domingo à tarde, retornando à cidade e às suas casas no sábado  pela manhã após passarem na sede para receber e assim poderem comprar os mantimentos para as suas famílias da cidade e para trazerem à fazenda no domingo e comerem durante à semana.

Os alimentos trazidos pelos limpadores dos pastos eram arroz, feijão, farinha, jabá, banha de porco, café, açúcar e, vez por outra, alguns pães feitos na cidade.

Eu àquela época, ano mil novecentos e sessenta e dois, contando doze anos, era o cozinheiro de papai e seu João, amigo e companheiro de empreitada de seu Luiz..   Acordava-se às seis horas e feito o café, papai geralmente o tomava comendo um pedaço de carne seca com farinha de mandioca; eu, quando existia, comia pão envelhecido numa lata abafada.  Seu João às vezes comia pão, às vezes, carne com farinha.  Saiam a seguir para o eito. Eu que ficava no rancho, levava às nove e meia o almoço deles até o local em que se encontrassem com suas foices vergando o capim amargoso e o assa-peixe.

Aos doze anos de idade e longe da cidade e da bola, do pião, da pipa, da bolinha de gude e de tantas outras brincadeiras de que tanto gostava, tendo de me sujeitar àquela vida, restava aproveitar da forma possível o que havia. 

A casa que nos servia de alojamento era, literalmente, um rancho. Era feito de paus fincados verticalmente as suas paredes e sem rejunte de barro.  O fogão era de barro e chapa de ferro onde se assentavam as panelas de cozinhar.  A porta era fechada por oito paus encaixados no batente.  A cobertura de sapé. 

O rancho ficava ao fundo da fazenda em seu ponto mais extremo, cercado de matas e voltada a sua frente para a malha de pastagem.  À direita de sua porta, em descida, passava um córrego pequeno nascido no meio da mata detrás do rancho.  À beira deste riacho eram as panelas e pratos lavados usando-se pouco sabão e bastante  areia para a esfrega.  Era entre às dez horas e ao meio-dia que eu sempre me encontrava à beira d’água para a lavagem dos caldeirões e panelas.  No intervalo do estridente raspar das panelas ouvia o gorjeio dos pássaros e o ruflar dos bichos, ora longe ora perto.  Via a água escorrer serena e mansamente levando grãos de arroz e manchas de gorduras que formavam mapas no espelho d’água e iam sumindo por baixo dos galhos de matos  rio-abaixo.  Quantas reflexões viabilizaram aquelas águas, aqueles barrancos, aquelas manchas de gordura, aqueles grãos de arroz a boiarem com os peixes sob às águas a lhes perseguirem.  Se o corpo estava preso ao destino de ali viver, a mente, por atavismo, viajava para todos os cantos imagináveis enquanto não se detinha na orquestra da passarada, no ranger dos galhos das árvores por sobre as águas ou quando o bramido de outros animais o amedrontava.  Gostoso era o aroma da areia molhada à beira do rio exalando uma mistura de peixe e mijo e estrume do gado na medida que o sol penetrava as folhagens das árvores atingindo o solo.  Era um conjunto de sons, fragrância  variada,  frescor indizível.  Que gostoso era fazer montinho de areia, amoldar o cotovelo e depois urinar dentro do pilãozinho !  E o arrepio naquele paraíso !

A inocência combinava com o ambiente e nada sabia do por vir,  da força da poesia das santas mentes, da melodia, da harmonia, da argumentação, do discurso, da peroração e do apologismo dos homens.   Do homem veio a entender bem mais tarde.  Veio a compreender sua pequenez e o caudaloso rio de suas angústias e insensatez e de sua pouca nobreza por julgar que tudo é certo como está, por não verificar a ausência de mudanças rumo ao aroma, ao frescor das águas às margens dos regatos, por desprezar a poesia, por haver já perdido as lembranças da harmonia abundante na natureza.

Quem me dera pudesse eu retornar àquele lugar e quem dera tivesse o dono da fazenda mantido tudo como estava na minha meninice !    Eu faria tudo de novo tentando não me lembrar de que cresci e aguardaria sentado num galho apodrecendo qualquer com os pés dentro d’água chegar a inspiração da poesia, não a que aprendi,  mas aquela que a brisa me fez viver debaixo daquelas árvores.


                     Assis Rondônia, XXIX-VIII-MCMXCIX

Um comentário:

  1. Descrevi quase tudo de minha infância. São sonhos vividos que hoje adorna minhas lembranças.

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