A AZEITONA E O MUNDO



A AZEITONA E O MUNDO



         O ano era hum mil novecentos e sessenta e um e contava eu com nove anos de idade, quando vi pela primeira vez uma azeitona. Vi e comi. 

         D. Maria era uma mulher bonita, ainda, aos seus quarenta e cinco anos de idade.  O seu Zé era  administrador de uma fazenda nas redondezas de  Nossa Senhora das Graças, Norte do Estado do Paraná, que se masturbava à mingua de mulher, após haver se separado de um casamento, ninguém sabia bem por quê.  Era um homem que se pode dizer bem apessoado, simplório, trabalhador e homem de confiança do senhor Lazin Carola, cuja quantidade de terras  bem podia servir de cemitério para quatro ou cinco cidades da região.  Era uma só plantação de café, e que belo café !   Seu Zé era o chefe de administração que pagava mal e fiscalizava bem os braçais volantes que carpiam os matos do cafezal e faziam a colheita.  Os tarefeiros eram sempre a colônia dos miseráveis da cidade que vinham à fazenda para ganhar o pão-de-cada-dia, comendo seus caldeirões de arroz & feijão, às vezes ornamentados por  um ovo ou, quem sabe, por uma sardinha curtida nas grandes latas de dez quilos vendidas nos armazéns de secos & molhados da cidade.  Esses desafortunados eram pessoas felizes em suas mediocridades, mas eram felizes, disto não se podendo duvidar vez que o sofrimento provém somente do que enxergamos na vida.

         Papai, miserável feliz compunha a colônia da cidade que vinha à fazenda capinar, derriçar o café, rastelar, abanar e ensacar ao preço do feijão & arroz.   Mamãe o acompanhava para o serviço, pois um só par de braços não garantia a sobrevivência dos filhos que tinham inventado.  Então o velho Luiz se desgraçava fisicamente para o arroz & feijão e se se desdobrasse um pouco mais, conseguiria, por certo, além do fumo arapiraca de que necessitava para o rapé que ordinariamente cheirava misturado à amburana, poderia, talvez, garantir também a cachaça que ficaria por traz da porta do quarto para quebrar a friagem do banho de água fria todas as vezes que da roça chegava, embora na maior parte destas vezes lavasse apenas as pernas e os braços e, ainda assim, com o pinto fedendo quisesse com minha mãe copular, mesmo que ela larga fosse pelo períneo rompido em decorrência da porrada  de filhos paridos com a assistência da parteira durante a longa vida já passada.

         Foi então a mim apresentado a azeitona.

         Papai, humilde por natureza, mamãe interesseira também por natureza, falaram da mulher que sozinha vivia na cidade.  Falaram de suas qualidades, falaram de seus predicados e falaram de sua beleza.  Falaram dos filhos que ela possuía  e de sua angústia de viver na incerta dos homens do mundo, não que fosse puta, mas que vivia se homiziando com homens casados, homens que mantém mulheres como filiais.  Que vivia das sobras.  Que vivia da esperança falsamente sabida de que estes homens, um dia quem sabe, viriam a lhe dar um lar e uma vida decente.  D. Maria era uma mulher vivida e experiente que sabia a distância entre a prostituição e o amor.  Ela não era puta.  Apenas buscava dentro da possível decência manter-se nos conformes das regras estabelecidas pela sociedade na qual se via incluída e da qual jamais imaginava  se ver de outro modo, afinal, embora se dinheiro pudesse obter às custas das assepcias vaginal, por certo até poderia se sujeitar.  Mas d. Maria não se prestava a isto. Não era seu sonho imediato. Seu sonho, imagina-se, seria encontrar uma esperança concretamente surgida de qualquer dos pontos cardeais, que abrandasse sua desesperança, que pudesse aplacar suas incertezas, indicar-lhe o Norte e, quem sabe, devolver-lhe o sonho o sonho de poder ver em sua casa um homem suspirando e roncando com o sono justo de um homem bom e que encampasse o peso de suas responsabilidades e de suas angústias frente às suas enormes responsabilidades, pois, assim, este homem teria de si o melhor dos orgasmos, o melhor de sua alma e ela lhe entregaria os prazeres que reservou para aquele que o merecesse; em seguida, se tal idéia lhe ocorresse neste instante, iria limpar o pênis do marido ainda na cama com a melhor toalhinha de que pudesse dispor; faria logo um gostoso cafezinho e lhe acariciaria brandamente passando-lhe a mão por sobre sua testa e pensaria, não no passado, que nunca cabe nestes instantes;  passaria por sua mente, isto sim, as maravilhas da vida, a certeza de valer a pena viver, a certeza da existência do amor; passaria por sua mente a imagem poética de ver seu homem deitado e extasiado da relação recém terminada; sentiria ela o maior amor do mundo por julgar que seu mundo nesse instante estaria repleto e completo, pois ali está seu homem; sua estaca; sua segurança, pois, é preciso ter-se uma estaca, um porto seguro para imaginar.  A foda, a esta altura, que importância teria ?  Não importa. Quem é que disse que era ela, a foda, o momento importante.  Ninguém !  Amar é uma questão de estar disposto e o amor nada cobra por isto.

         Papai, então, falou ao seu Zé, o administrador da Fazenda, sobre a d. Maria e de sua beleza e, sabendo ele do que possivelmente faltasse a ela, falou-lhe muito mais; mamãe, naturalmente, completou a tarefa.  Com tantas idéias e sugestões e fantasias que se opunham à punheta, seu Zé logo muito se interessou em conhecer d. Maria; ele que até então lavava suas próprias cuecas empedernidas de porra pelas ereções noturnas, ou, como chamam os médicos, pela polução noturna.

         No dia em que seu Zé veio à Cidade de Nossa Senhora das Graças para conhecer d. Maria, sendo óbvio que  um gigolô não obedece a via de uma mão única, ele faz o serviço completo, naturalmente, papai e, muito mais mamãe, já haviam provocado a imaginação de d. Maria.


         Ele chegou por volta das dez horas da manhã em nossa casa. Dali foi levado à casa da d. Maria aonde se entenderam conversando e falando de seus passados.  Falaram do que julgavam certo e do não julgavam certo; falaram de suas venturas e desventuras; de seus desacertos; de suas esperanças; de suas certezas no amor; falaram da possibilidade de que eram viáveis um para o outro, enfim, que se ajustavam.

Seu Zé da casa de d. Maria saiu feliz e esperançoso, tudo estava acertado; ainda mais agora que já a tinha visto e com os espermas em marcha, logo começou a também sonhar o momento da união; na semana seguinte, segunda feira, o caminhão da fazenda viria buscá-la com os filhos para ir ocupar uma das melhores casas da colônia na fazenda.

         Para comemorar uma vitória sobre a mulher recém conquistada, seu Zé que melhor era remunerado que o seu Luiz e, enquanto um frango bem temperado e bem assado frigia na caçarola da d. Yayá era preparado, papai e seu Zé desceram para o centro da Cidade e lá beberam cervejas, coisa rara para papai.  E, ainda por cima, comeram azeitonas.


         Eu, que pouco entendia de tudo, vindo da rua do caminhar de moleque, sem esperar, encontrei papai que só bebia cachaça para quebrar a friagem, no bar do seu Arnóbio;  estavam a beber cerveja.  E a comer azeitonas.  Eu não sabia que coisa era aquela, embora fosse o ano hum mil novecentos e sessenta e um, quando The Beatles começavam a agitar o pensamento sobre coisas além de uma azeitona.

         Papai, humilde como sempre, deu-me uma daquelas azeitonas e eu logo mastiguei o caroço machucando os dentes por ignorar a sua existência, mas  senti o gosto de algo diferente; diferente de tudo quanto já havia sentido.

         Que sensação é comer uma azeitona pela primeira vez !
        
         Foi a partir daquela azeitona, para mim, que tudo mudou.

         Falem, se quiserem, das viagens de navios, dos cruzeiros marítimos, do concord, falem.

         Eu sempre falarei daquela azeitona, cuja lata eu via sobre o balcão do seu Arnóbio.


Assis Rondônia

XXI/VIII/MCMXCIX
        

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